Já entendemos que estou em processo de desbloqueio criativo, ou melhor, desbloqueio da escrita.
E é sempre assim. Vida acontece, vida inspira e eu começo a escrever como se as palavras soubessem exatamente o caminho para aquilo que preciso dizer. Vida acontece, vida decepciona e as palavras somem como se a própria literatura fosse a culpada pelos meus sonhos e desilusões.
E ela é mesmo.
A cada desbloqueio eu faço uma série de reflexões e publicações meta-linguísticas, que servem como um alongamento de ideias que eu me empolgo e escrevo qualquer coisa meia boca pra finalmente me sentir aquecida e recuperar o ritmo (isso se a vida não me interromper de novo e me obrigar a começar tudo outra vez).
Apesar da minha lamentela na carta anterior eu tenho levado uma baita vida de artista. Só não estava escrevendo, ou melhor, só não estava escrevendo o romance pq as páginas matinais foram escritas religiosamente ao nascer do sol
Então, segue uma resposta à mim mesma sobre o medo de escrever um romance e todo o drama envolvido em ser ou não artista:
Se escrever é meu propósito, eu fatalmente vou caminhar nessa direção. O desejo da vida de artista é uma bússola para o meu coração, nem todas as escolhas vão ser obviamente criativas, mas de certa forma elas vão abrir mais espaços pra essa vida que eu quero levar.
Qualquer obra de arte que exija muito tempo e esforço extrai bastante do nosso poço artístico. E, se tiramos água ou peixe demais, nos sobram poucas reservas. Pescamos em vão as imagens que gostaríamos de visualizar. Nosso trabalho seca e ficamos sem saber o porquê, “justamente agora quando tudo fluía tão bem”. A verdade é que o trabalho pode secar justamente por estar indo tão bem. […] Para encher o poço, pense em magia. Pense em deleite. Diversão. Não trate como uma obrigação. Não faça o que você deve fazer - abdominais do espírito, como a leitura de um texto crítico tedioso mas muito recomendado. […] A costura, algo regular e repetitivo por definição, tanto acalma quanto estimula o artista interior. Tramas inteiras podem ser alinhavadas na nossa imaginação enquanto trabalhamos com a agulha. Como artistas, podemos literalmente pintar e bordar. […] A nossa atenção focada é essencial para encher o poço. Precisamos encontrar nossas experiências de vida, e não ignorá-las. (Cameron, 2017, p.48-51)1
Já compartilhei aqui os eventos que fizeram minha fonte secar e nesse meio tempo eu literalmente pintei, bordei e voltei a tocar piano. São fontes mais leves e acessíveis que fazem meu poço da literatura encher, é onde eu mato a minha sede quando a boca seca pras palavras.
Quero dizer que eu continuo sendo escritora, mesmo quando passo um tempo sem conseguir abrir o bendito arquivo no drive. E isso com certeza vai além do que é obviamente criativo, como os meus hobbies de encher o poço, isso atravessa escolhas da minha vida inteira. Quer um exemplo? Te dou dois.
A minha mudança pra Vila Madalena. Eu li Virginia Woolf e fiquei obcecada com a ideia de que precisava de um teto todo meu pra escrever mais e melhor. Esse medo de não conseguir escrever, foi justamente o que me deu coragem de assumir um novo contrato de aluguel2.
Encontrar uma casa era muito mais do achar um lugar para morar, era escolher a pessoa que eu me tornaria dali pra frente. (Bravo, 2023)
Na casa nova pude realizar o sonho antigo de comprar um piano. Agora eu ocupo as paredes com prateleiras de livros e referências visuais do meu romance, a minha caixa de atelier tem um espaço respeitoso na escrivaninha em L que sempre sonhei. E de brinde ainda tenho uma vista maravilhosa, moro com a minha melhor amiga e seus dois gatos (inclusive um deles é meu companheirinho das morning pages e estava deitado debaixo do meu cobertor até agora). Nada disso teria acontecido se eu não tivesse sido movida pelo medo de não escrever ou pelo desejo de fazê-lo, os dois sentimentos são muito parecidos.
Outra coisa é a não-monogamia solo, que tirou a vivência romântica do centro da minha vida e deixou lugar para que eu orbitasse e meus próprios desejos. E isso se reflete de forma muito nítida nos meus diários. Quando não estava escrevendo sobre morrer de amor, eu conseguia olhar para a arte e meu processo criativo.
As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural. (Woolf, 1985, p. 36)3
Curiosamente meus relacionamentos monogâmicos-tradicionais-românticos-sérios-duradouros-etc e tal foram com artistas: artista plástico, ator, cineasta e a lista poderia seguir, se não tivesse percebido que eu produzia muito depois dos términos e ia paulatinamente parando de escrever quando começava um novo relacionamento e me dedicava em manter o papel de musa.
Em resumo. Se eu não for artista vou sim ter uma vida tranquila e previsível com as contas do mês em dia. Mas artista que sou, começo o meu dia pintando aquarelas com o nascer do sol, depois me encontro em um lançamento de poesia no meio da tarde e termino o dia escrevendo mais sobre a minha vida pessoal do que gostaria. Se eu não for artista, eu não sinto nada. Sendo artista eu sinto muito medo e isso me leva a todo tipo de lugar interessante.
CAMERON, Julia. O caminho do artista: Desperte o seu potencial criativo e rompa seus bloqueios. Rio de Janeiro: Sextante, 2017
BRAVO, Taís. Escolher viver sozinha. Disponível em: <https://taisbravo.substack.com/p/o-aconchego-da-integridade>. Acesso em: 17 set. 2023.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 1985.
Outras referências que reverberam por aqui:
Esse poema da página Go Writers que me fez pensar no medo e na ansiedade como companheiros:
Essa publicação da newsletter Tristezas de estimação em que a Fabiane Guimarães vai contar sobre a influência da maternidade em sua fonte de escrita