Como se não bastasse ser libriana com ascendente em áries, eu ainda nasci em São Paulo. Pra mim, isso é motivo mais do que suficiente para explicar minha profunda indecisão e impaciência. Não consigo fazer escolhas sem antes ter certeza de que são as mais perfeitas, mas também não tenho saco pra ficar ponderando todas as possibilidades. Minha saída é deixar o destino escolher, por exemplo, se estou em dúvida entre aproveitar o sábado para arrumar a casa ou passear, deixo a previsão do tempo decidir: temperatura com número ímpar é faxina, com número par é passeio.
Parece que minha psicóloga discorda, ela diz que, além da terapia, praticar alguma atividade física ou ter um hobby podem amenizar o destino fatídico determinado pelo meu nascimento. Não sou muito atlética, mas achei melhor começar pelos esportes porque me parecem mais limitados diante da infinidade intimidadora de hobbies à disposição.
Uma pesquisa rápida no Google me mostrou duas unidades de academias 24h próximas a minha casa: uma ficava no caminho para o trabalho, o que seria muito conveniente para me exercitar antes ou depois do expediente, enquanto a outra estava em uma região do bairro que eu não costumava frequentar e a psicóloga disse que era importante experimentar coisas novas. Na dúvida, utilizei como critério aquela que tivesse menos unidades de Oxxo no caminho. Farmácias seriam usadas como desempate.
A grande vantagem das academias 24h é que elas têm maior oferta de tempo para estarem lotadas. Temos o pico do pessoal que trabalha em horário comercial e o horário de pico de quem faz home office.
Naquele dia, eu havia tentado o horário de pico da noite. Estava em dúvida se, depois do trabalho, iria jantar primeiro e malhar depois, ou seria melhor fazer o contrário. Enquanto subia o elevador pra casa, recebi a notificação da academia me convidando a experimentar uma nova aula de zumba clássica e vocês já devem saber o que aconteceria se, ao invés disso, fosse do iFood com ofertas de jantar sem taxa de entrega.
Na terceira música, eu já estava pingando suor, faminta e com a convicção de que teria sido melhor ter jantado primeiro porque minha incompetência decisória se agrava consideravelmente quando estou em estado de sono ou fome. E neste caso, o combo cansada e faminta poderia ser trágico, como no dia em que pedi um rodízio japonês e esfiha porque não sabia o que comer para acompanhar o jogo de Japão e Emirados Árabes na Copa do Mundo.
Quando se aproximava o final da aula, recebi uma notificação do McDonald’s que havia acabado de inaugurar e que estava a apenas um Oxxo de distância! Era uma promoção de batata frita grátis exclusiva para retirada do produto na loja. Essa seria a minha salvação, a não ser pela contradição de entrar no Méqui vestida com roupas de ginástica.
Não sou uma pessoa de muitos amigos e cumprir uma rotina perfeita trouxe os “semi-conhecidos” como efeito colateral. Fiz uma lista dos semi-conhecidos que poderiam me encontrar nessa conflituosa situação e qual seria o impacto para a minha imagem no bairro. Pensei que meus semi-conhecidos da academia não deveriam ser grandes frequentadores do Méqui e vice-versa. Acabei por me convencer, pensando que minha psicóloga estaria orgulhosa em ver essa tentativa de aproximar pessoas diferentes ao meu convívio.
Entrei no Méqui com o orgulho de quem cumpria uma missão diplomática e apresentei meu cupom como quem apresenta uma credencial da ONU. A mensagem no totem me informa que a promoção era válida apenas como acompanhamento para pedidos de milkshake consumidos no local. Vejam bem, a situação seria muito pior se me vissem entrando ali com roupas de ginástica e saindo com as mãos abanando. Sustentada por meus argumentos de embaixadora do equilíbrio entre fits e fasts, concluí meu pedido e me dirigi ao balcão.
Olhei ao redor à procura de semi-conhecidos que pudessem me dirigir algum questionamento e calculei que o tempo de permanência no salão me levaria a uma exposição maior à crítica do bairro do que a curta distância de um Oxxo e meia farmácia que me separavam até o portão do meu prédio. Pego meu pedido, me afasto do balcão, disfarçadamente devolvo a bandeja e saio com o milkshake em uma mão e a batatinha em outra.
No caminho até em casa, não vejo ninguém além de um rapaz à minha frente carregando sacolas de supermercado. Ele caminha a passos lentos, talvez pelo peso das sacolas. Posso tentar ultrapassá-lo para evitar mais tempo de exposição e o derretimento do copo de papel, mas mantenho o ritmo e garanto que nem mesmo ele me veja em situação diplomática-contraditória. Até que o sujeito para em frente ao meu prédio e desbloqueia o portão com reconhecimento facial.
Mantenho a calma na esperança de que seja um morador de outro bloco, ele para no balcão da portaria para falar alguma coisa com o zelador e eu passo agradecida pela oportunidade de vencer mais um obstáculo sem ser notada. Aperto o botão do elevador com o cotovelo e respiro aliviada com o sucesso da missão.
Uma comemoração precipitada, pois ao meu lado está o vizinho muito solícito que se oferece para abrir a porta do elevador e selecionar o meu andar, já que minhas mãos estão ocupadas. Mas que feliz coincidência, moramos no mesmo andar!
Subimos até o 10º. Ele, em profundo silêncio, encarando minhas mãos que, a essa altura do campeonato, já estão sujas de óleo de batata frita e milkshake derretido, e eu mantendo a compostura como se carregasse um suco detox e palitinhos de cenoura.
O avesso
Essa já é a segunda crônica que escrevo baseada em alguma coisa que de fato aconteceu comigo.
O fato foi a minha desistência em cumprir meu cronograma de exercícios em um horário de academia lotada e pouca motivação, saí da esteira, passei no Méqui que fica no caminho e voltei para casa feliz e contente com a minha porção de batatinha. Também aconteceu do meu vizinho de andar entrar no elevador ao mesmo tempo, e eu me divertir com o suposto julgamento sobre a minha contradição.
Nesse dia específico da batatinha, achei graça de contar no grupo das amigas e para o trelelê o que aconteceu e a reação foi unânime: “você deveria escrever uma crônica sobre isso”. Aceitei o pedido pela lisonja e desaforo deles acharem que tudo o que conto é história mais inventada do que vivida.
Não fiz nenhuma pesquisa além de uma consulta rápida para descobrir qual seria o melhor mapa astral para a personagem. O resto foi questão de explorar o gênero da crônica, que é basicamente uma caricatura do cotidiano urbano: a quantidade de conveniências e farmácias que atacam os bairros da cidade, academias sempre lotadas, notificações ininterruptas no celular. Coloco nesse cenário uma personagem indecisa e levemente ranzinza porque é divertido rir de gente mal-humorada. Voilà! Temos uma crônica.
Para garantir que as minhas referências seriam compartilhadas, principalmente a ideia de usar as lojas de conveniência como unidade de medida, eu compartilhei o arquivo com aquele mesmo pessoal que me provocou a escrever. (Para eles verem que eu capricho contado lorota, mas capricho ainda mais quando escrevo)
Pra quem quiser saber mais sobre crônicas
Tudo o que sei sobre este gênero foi o que aprendi na escola com a coleção “Para Gostar de ler”, então recorri a
que sabe muito de estudo e técnica literária, e ela me indicou o livro “A Crônica” de Jorge de Sá.
me vi todinha nessa crônica
(e lógico que já tava achando que era tudo 100% verdade)
teve um dia que eu tava doida por um cookie, saí de casa decidida a comprar um cookie, comprei o tal cookie maravilhoso, quentinho, no café a caminho do salão, mas não quis comer no café pra não ser vista por semi-conhecidos atacando o cookie. botei na bolsa, fui no salão, e lá tb não quis comer pq seria esquisito. o cookie parecia gritar comigo da bolsa. quando a cabelereira terminou de passar a tinta e me deixou sozinha no mezanino, tirei o cookie da bolsa, já frio, meio amassado e comi como se estivesse cometendo um crime, ansiosa e com medo de ser pega no ato casualmente comendo um cookie no salão em plena tarde. conclusão: o cookie mais frustrante da vida. devia ter comido no café sem medo.